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Testemunhos: escolher outro caminho

por beatriz j a, em 24.07.14

 

 

 

(do blog transicao_ou_disrupcao)

23 de Julho de 2014

Em Maio passado formalizei uma decisão sobre a minha vida profissional que culmina um percurso pessoal de tomada de consciência e de intensa busca interior que se iniciou em 2011-2012. Solicitei a rescisão do meu contrato como docente universitário, função que desempenhava há quase 28 anos. O texto que se segue é uma adaptação da carta que entreguei ao director da minha faculdade em complemento ao pedido formal.

 

"Como tive oportunidade de comunicar noutra ocasião, tenho sentido um desconforto crescente no exercício das minhas actividades, quer como docente, quer como investigador desta faculdade. As causas desse meu desconforto prendem-se com factores de ordem pessoal e conjuntural e não têm apenas a ver com esta escola em particular. No entanto, senti a necessidade de partilhar algumas das múltiplas razões que estão na origem desta minha decisão.

Considero condição necessária para desempenhar as minhas funções com motivação, empenho e qualidade, uma identificação e consonância com os valores e objectivos da escola. Acontece que nos últimos anos fui-me sentindo cada vez mais afastado desses mesmos valores e objectivos. O descontentamento foi dando lugar à frustração e esta foi-me roubando o gosto pelas minhas actividades académicas. Por um lado, em termos de docência e gestão académica, fui assistindo a uma transição para um modelo cada vez mais tecnocrático, mais burocrático e menos democrático, na medida em que tem conduzido a um distanciamento progressivo dos docentes em relação às decisões sobre as orientações estratégicas da escola. Associado a este modelo tem estado um mecanismo perverso de financiamento das universidades públicas que levou a que estas cedessem à tentação de aumentar o número de ingressos em função da procura, sem as necessárias contrapartidas institucionais, como o aumento de número de docentes, a dotação orçamental adequada para as aulas de laboratório, a renovação de equipamentos pedagógicos, etc., e não apostando em estratégias de qualidade do ensino. Assisti pela primeira vez este ano lectivo a situações aberrantes como a inexistência de verbas para comprar reagentes para as aulas de laboratório e colegas de departamento contratados a tempo parcial mas cujos ordenados não corresponderam à percentagem de tempo contratada e à carga lectiva que efectivamente tiveram. Os sucessivos aumentos do número de alunos em vários cursos têm vindo, por sua vez, a provocar uma diminuição da qualidade do ensino, do grau de exigência e do nível de formação dos alunos. Por exemplo, turnos de laboratório com 30 alunos são uma frustração para os estudantes e um desgaste para os docentes. A agravar esta situação foi instituído um sistema de avaliação contínua que orienta o desempenho dos alunos no sentido de estudar para os testes em vez de promover o gosto pelo conhecimento e o pensamento crítico. Os alunos deixam de ir às aulas para se dedicarem às avaliações e a interacção com os docentes vai esmorecendo. Está-se assim a privilegiar um modelo de ensino formatado para o desempenho e a competição com vista a formar indivíduos que entrem de forma dócil e aquiescente no sistema produtivo. Como disse o escritor Alberto Manguel “A escola, a universidade, deveriam ser o lugar onde a imaginação tem campo livre, onde se aprende a pensar, a reflectir, sem qualquer meta. Mas isso é algo que estamos a eliminar em todo o mundo. Estamos a transformar os centros de ensino em centros de treino.” Outro sintoma da mudança de valores da escola foi a instalação duma cultura de vulgaridade e prepotência que se manifesta por exemplo na aberração das praxes académicas e no abuso do consumo de álcool pelos estudantes, perante a passividade ou anuência dos docentes e restantes funcionários (mas também dos pais e demais sociedade).

Em termos de investigação, tem vindo a ser dado um peso crescente aos indicadores quantitativos que fomentam uma produção científica baseada fortemente no número de publicações e em índices de impacto questionáveis (que têm aliás vindo a ser postos em causa), e que promovem uma cultura de competição nefasta, na medida em que distorce o carácter universalista da ciência e da busca do conhecimento que estão na génese do conceito de universidade. Acresce que as exigências da multiplicidade de actividades dos académicos - gestão de projectos, orientações, escrita de publicações (para além da docência e actividades de gestão) - deixam pouco tempo e espaço para a reflexão, o questionamento e a contaminação entre saberes. Por outro lado, a ideia de que a boa ciência é aquela que resulta em aplicações tecnológicas e patentes é redutora e conduz a aberrações como a génese de empresas que vingam no mercado de jogos de computador de carácter alienante e pouco edificante. Claro que este não é um problema exclusivamente nacional mas apenas um reflexo daquilo que se passa também noutros países.

Entre as razões de ordem conjuntural destaco a profunda crise nacional e internacional que vivemos. Trata-se duma crise sistémica do modelo civilizacional ocidental que se agudizou com a hegemonia do capitalismo neoliberal e da economia de mercado, e que resultou numa tragédia social e ambiental cuja verdadeira dimensão se tem vindo a tornar cada vez mais evidente. As universidades não deviam alhear-se desta realidade com o risco de porem em causa não só a sua própria sobrevivência como a do legado cultural e científico que levámos séculos a construir. Considero aliás urgente e absolutamente crucial que haja a coragem e clarividência para questionar o actual modelo de sociedade baseado num crescimento insustentável e predatório, e que se analise com realismo e frontalidade as questões dos recursos básicos (água, alimentos, energia, minérios), do crescimento populacional e dos impactes ambientais, de modo a salvaguardar o futuro da humanidade e dos ecossistemas planetários. As universidades deveriam desempenhar um papel crucial neste sentido mas não só deixaram de responder aos problemas mais graves da sociedade, como perderam a capacidade de intervir quer na definição das políticas de ensino e investigação, quer na definição dos valores da própria sociedade. Pior ainda, a academia deixou-se contaminar pelos valores da ideologia neoliberal, mercantilista e tecnocrática que permeiam transversalmente a sociedade actual e não está a contribuir para encontrar os caminhos que nos afastem do rumo de decadência moral e cultural, e de auto-destruição em que nos encontramos.

Tornou-se claro para mim que ao continuar onde estive até agora só iria contribuir para perpetuar este estado de coisas. Por um lado, não soube encontrar as formas ou os recursos para fazer a mudança por dentro, mas por outro lado não vislumbro na escola a vontade ou o interesse em querer mudar. No entanto, considero que o meu afastamento não é uma desistência mas antes uma procura consciente de outros caminhos e outras possibilidades. Espero vir a conseguir contribuir de alguma forma para a renovação do sistema educativo que rompa definitivamente com o actual sistema baseado em modelos de ensino reducionistas, mecanicistas e tecnicistas, que consistem numa mera transposição do paradigma social vigente. Considero necessária uma mudança profunda e corajosa de um ensino meramente transmissivo e passivo para um ensino transformativo e activo que estimule o pensamento crítico e a emancipação intelectual. Só assim será possível a transformação do actual paradigma de desenvolvimento baseado no consumo e no crescimento constante num outro que nos conduza à sustentabilidade, acarretando necessariamente mudanças profundas do nosso modo de vida e dos nossos conceitos de bem-estar e de qualidade de vida."

 

publicado por transicao_ou_disrupcao

 

 

publicado às 15:09



no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau. mail b.alcobia@sapo.pt

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