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O mundo mudou e o senhor Moura não percebe

por beatriz j a, em 03.03.19

 

... ou não aceita.

A maior transformação socio-cultural da segunda metade do século XX -que ainda decorre- é a do acesso das mulheres à educação e a participação das mulheres na vida pública, política e laboral.

 

Aos poucos esta realidade tem levado à transformação das mentalidades, nomeadamente no que respeita à rejeição da normalização do poder patriarcal que é visto como um anacronismo, uma espécie de cauda que por vezes ainda aparece em algumas pessoas e tem que ser retirada. O que acontece é que as pessoas que estão no poder, nos vários poderes, ainda são do tempo em que a cauda era normal, por assim dizer e, ainda falam e agem como se estivéssemos noutros tempos. Mas não estamos e há um equilíbrio de forças que começa a notar-se. E ainda bem.

 

Se falassem com os meus alunos perceberiam que a mera ideia de uma rapariga ou uma mulher serem obrigadas a ter uma gravidez e uma maternidade que internamente, física e psicologicamente rejeitam, já só é defendida por alguns alunos testemunhas de Jeová e os outros consideram isso uma tortura; que a grande razão para o afastamento das igrejas, nomeadamente as raparigas, é perceberem que são instituições que as tratam como seres de segunda categoria. E ainda percebiam que os rapazes também acham estas ideias de que as mulheres adúlteras merecem castigo um anacronismo. 

 

Mas os juízes e outros homens de poder ainda não se deram conta disso. A justiça já terá tantas mulheres como homens e por isso as coisas começam a mudar. No dia em que a política tiver tantas mulheres como homens as coisas mudarão porque o que tem acontecido nestes milénios é que não há ninguém no poder para representar as mulheres e todos os que lá andaram rebaixaram as mulheres para manter superioridade; como se homens e mulheres fossem inimigos e não duas faces do mesmo ser que é humano. Por ainda estarem nessa guerra, os Mouras deste país, pensam que ser feminista é o contrário de ser machista. Mas é claro que não é. Ser feminista é querer o fim da guerra com a consequente igualdade de direitos [humanos] perante a lei.

 

Compreendo: estão, a maioria, habituados de séculos e séculos de patriarcado a chegarem onde querem sem esforço e muitas vezes sem mérito, apenas pela negação e submissão das mulheres enquanto concorrentes. São contas fáceis de fazer: se temos vinte lugares para os quais há vinte homens e vinte mulheres a concorrer, podendo eliminar as mulheres há lugar para todos os homens.

 

O senhor juíz, como muitos outros, estão em pânico com estas mudanças ao verem escoar-se pelo ralo os seus privilégios de sempre e então entrincheiram-se na defesa dessa visão patriarcal do mundo. Se tudo correr bem, quer dizer, se as mulheres e os homens de boa vontade e inteligência esclarecida não desistirem, essa visão patriarcal tem os dias contados.

 

Outra coisa é o que diz este senhor acerca da prestação de contas dos juízes, em primeiro lugar e, depois, do poder controlador da comunicação social ou do povo.

 

A prestação de contas deve existir a um orgão interno da própria justiça sempre que os juízes profiram sentenças que estejam feridas de inconstitucionalidade ou subjectividade contrária ao propósito da justiça em si mesma e não apenas por falhas administrativas, senão os juízes seriam um poder absoluto, coisa que não tem cabimento dentro de uma democracia. Um juíz não está no posto para se representar a si próprio e à sua ideologia pessoal e castigar as pessoas que lhe sejam contrárias. E se são incompetentes ao ponto de cometer erros grosseiros de justiça devem ser afastados.

 

Em segudo lugar, é preciso não esquecer que o poder judicial é uma transferência de poder do povo. Directa. Não é através da AR. Nós o povo, em vez de fazermos justiça pelas nossas próprias mãos, transferimos o poder de fazer leis à AR e o poder de as aplicar nos conflitos entre particulares e instituições, bem como sancionar penas, aos juízes.

Os juízes respondem ao povo e é legitimo que o povo controle a sua acção e os critique se o entender. E como o povo não tem modo de dizer directamente aos juízes o que pensa da actuação da justiça, di-lo nos jornais e em outros meios de comunicação. E é legítimo que o façam porque os juízes não actuam em representação de si próprios mas de nós, o povo.

Assim como lhes transferimos o poder, quando entendemos que estão a atraiçoar as suas funções revogamos essa transferência, que é o que se passa nas revoluções onde se quebra o contrato social.

Portanto, é bom mesmo que haja um regulador interno da justiça que faça auto-crítica e vá intervindo pedagogicamente junto de juízes que o necessitem e é bom também que os juízes ouçam o povo. Não para lhe obedecer mas para fazer essa auto-crítica e ir melhorando no seu trabalho. A não ser que os juízes se considerm perfeitos e sem necessidade de melhorias ou que considerem que a culpa dos erros é sempre das leis e não de si mesmos e das suas interpretações.

 

Quanto mais poder um orgão tem mais humilde tem que ser (neste sentido da auto-crítica) porque maiores são os estragos que fazem em caso de erros.

 

Pode dizer-se que algumas pessoas foram mal educadas ou ofensivas no modo como criticaram o senhor Moura mas que têm legitimidade para criticar, ah pois têm!

Reparo, no entanto, que o próprio juíz foi extremamente ofensivo na maneira como criticou a 'mulher adúltera'. Extremamente ofensivo e mal educado mas isso ele acha normal. Aliás, há pessoas que chamam tudo e um par de botas, cada vez com mais agressividade, àqueles com quem não concordam, mas depois abespinham-se se os outros os tratam na mesma moeda. 

 

Estou para ver se este juíz leva aqueles humoristas todos a tribunal. Ainda lhe sai o tiro pela culatra e se torna objecto do pagode nacional...

 

 

publicado às 15:42


no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau. mail b.alcobia@sapo.pt

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