Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau
No dia 14 de Maio passado 25 senadores, todos homens, do Alabama, votaram a mais repressiva legislação referente à saúde das mulheres proibindo o aborto mesmo em casos de violação e incesto, ciosos de protegerem a santidade da maternidade e protegerem as mulheres de si mesmas. Um deles defendeu a 'pureza' da lei, "Deus criou o milagre da vida dentro do útero das mulheres e não cabe ao homem extingui-la".
A audácia destas palavras pode ser traçada através de centenas de gerações de homens poderosos até aos primeiros escritos sobre o corpo das mulheres. Se o patriarquismo é o sistema com o qual os homens controlam as mulheres, nas palavras de Kate Manne, o sexismo é, 'o ramo da ideologia do patriarquismo que justifica e racionaliza uma ordem social patriarcal e a misoginia o sistema que policia e faz cumprir as normas de governo e expectativas dos patriarcas'.
Grandes intelectuais do passado clássico lançaram as fundações de séculos de sexismo e, embora esses gregos não o tenham inventado, os seus escritos continham as ideias e os argumentos que foram usados para racionalizar uma forma particularmente virulenta de misoginia.
Argumentos para a subjugação das mulheres em nome de uma divindade que se tornaram auto-confirmantes no sentido em que as mulheres eram vistas como naturalmente inferiores aos homens, tratadas de modo diferente desde o nascimento e treinadas para se auto-subjugarem [ainda vemos isso de modo explícito nas sociedades muçulmanas mais radicais, que são quase todas...] o que, por sua vez, suportava a ideia de que eram, de facto, imperfeitas e justificava a sua marginalização.
Em todos os estádios do pensamento ocidental houve mulheres expeditas e rebeldes dentro das restrições a que estavam sumetidas. Em todas as épocas houve alturas em que a maré do sexismo podia ter sido virada mas tal nunca aconteceu e os defensores da inferioridade das mulheres saíram sempre vitoriosos.
Os argumentos dos gregos reflectiam os interesses patriarcais e davam-lhes, em sua opinião, excelentes razões para controlarem o corpo das mulheres em nome do maior bem. Por muito resilientes que as mulheres fossem, o policiamento dos misóginos da ordem divina venceu sempre.
A noção de teleologia e a sua relação aos poderes procriativos das mulheres ajuda a perceber esta obsessão dos misóginos. De Platão a Mike Pence homens com poder acreditaram numa ordem divina natural na qual os homens devem agir para o Bem. Para muitos, os poderes procriativos das mulheres eram a única maneira delas contribuírem para esse Bem, de onde se segue que os homens que se arvoraram em intérpretes das intenções divinas achavam, e acham, que deviam controlá-las.
No Timeu, um livro fundamental na teologia cristã, Platão conta o mito de como o mundo foi criado. Primeiro os deuses criaram os homens e depois castigaram os que vivem uma vida de covardia e injustiça, transformando-os em mulheres a reencarnação da vida seguinte. Isto é, o Timeu sugere que as mulheres são uma forma degradada de humanidade, uma espécie de castigo para os que agem de forma pouco sábia. O que tem o corpo das mulheres que as torna tão degradadas?
Os escritos mais antigos detalhados sobre o corpo das mulheres datam dos séculos cinco e quatro AEC, associados a Hipócrates. Estes escritos contêm a primeira diferenciação clara entre o corpo das mulheres e dos homens e foram fundacionais na tradição médica ocidental.
Os autores hipocráticos concordam que os ossos, a infraestrutura do corpo humano, está coberta de carne, sendo esta constituída de diversas espécies de fluídos, que são mais ou menos quentes ou frios, húmidos ou secos.
Antes do advento da dissecação, uma visão do corpo com base em fluídos deve ter parecido plausível. O corpo humano tem sangue, vísceras, bílis e coisas para serem vomitadas; a comida transforma-se em outros fluídos. Partindo daqui chega-se à ideia da saúde como um equilíbrio de fluídos. Nas palavras de um autor hipocrático, o ser humano alcança a melhor saúde quando os fluídos estão equilibrados em termos de mistura, poder e quantidade.
Duas características do corpo das mulheres convenciam estes autores da principal diferença entre o corpo de homens e mulheres: as mulheres têm menstruação e um útero. A primeira mostrava que o corpo das mulheres era húmido, poroso, esponjoso e frio, ao passo que o dos homens era seco, firme e quente. Por causa da sua esponjosidade fria o corpo das mulheres absorvia mais fluídos e por isso sangravam regularmente. Os homens, devio à sua secura quente, absorviam o excesso de líquido e não precisavam de sangrar, sendo o sémen o único fluído em excesso neles.
Os textos hipocráticos imaginam os corpos das mulheres como uma espécie de tubo com duas bocas, uma em cada extremidade. Ambas tinham um pescoço (cervix) e lábios (labia), ligados por um sub-sistema de tubos e contentores. Quando os tubos trabalhavam correctamente, a passagem entre ambas estava desimpedida. Para verem se uma mulher estava fértil punham alho na sua vagina durante a noite e viam se de manhã isso tinha afectado o seu hálito, o que significava que os tubos estavam limpos e 'open for bussiness', para conceber... se tal não acontecesse e as mulheres não sangravam, considerava-se que tinham as vias entupidas e ficariam doentes por excesso de fluído que não saía. Os sintomas desta condição nas raparigas que não concebiam incluiam desorientação, enforcarem-se e desejarem a morte.
A segunda característica do corpo das mulheres que as diferenciava era o útero e a teoria do 'útero errante', causa, no entender deles, de muitas patologias das mulheres, era a crença de que um útero só está no devido lugar se os fluídos estão em equilíbrio. Quando estão em desequilíbrio o útero sai do sítio à procura de hidratação.
A cura incluia o reequilíbrio dos fluídos através do sexo... quer dizer, uma rapariga devia casar o mais cedo possível e ter muitos filhos para os seus fluídos estarem sempre equilibrados. Para estes primeiros ginecologistas a saúde da mulher estava ligada à sua subjugação à procriação. Mães, pais, maridos e, as próprias mulheres acreditavam nisto.
Quando os autores hipocráticos acorrentaram as mulheres aos seus poderes procriativos e aos seus maridos, iniciaram uma estratégia, no pensamento ocidental, de reduzirem as mulheres à sua capacidade de se reproduzirem e os homens a carrascos desta procriação.
Aristóteles, embora sugira que as mulheres possam atingir virtude e felicidade, diz que estas nunca são completas porque, 'o seu sangue, pesado e frio, torna-as mais permeáveis ao vício'. Uma mulher é, para ele, um homem mutilado e deve ser tratada dessa maneira. Escreve na Política, 'o macho é por natureza superior e a fémea inferior, o macho o governante e a mulher a subjugada'. Portanto, a Natureza, com os seus fluídos e humores, deu a cada um o seu lugar na ordem do mundo.
Quem sabe alguma coisa de Filosofia ou da História das Ideias, sabe a importância que estes autores tiveram na sociedade e mentalidades greco-cristãs ocidentais. O cristianismo foi construído sobre o platonismo e a sua doutrina do corpo-alma. Todo o cristianismo prega a submissão da mulher como uma coisa natural e Aristóteles foi chamado 'O Filósofo' durante muitos séculos medievais. As suas palavras eram a verdade, logo abaixo da palavra de Deus ou, até, ao mesmo nível. Os jovens que estudavam nas primeiras universidades, para além da Teologia e autoridades cristãs, elas mesmas uma incorporação do platonismo, o que aprendiam era Aristóteles. Até ao século XIX, os médicos continuavam a apoiar-se nas ideias médicas de Aristóteles e Hipócrates.
Um médico proeminente da época vitoriana descreve a atitude dos médicos relativamente às mulheres pacientes, 'Nós somos os fortes, elas as fracas. Elas são obrigadas a acreditar em tudo o que lhes dizemos. Não estão em posição de discutir seja o que for que lhes digamos e, por isso, estão à nossa mercê.'
Vemos esta mesma arrogância nos senadores do Alabama quando defendem que os homens são os guardas [eu diria carrascos] do corpo das mulheres.
O que uns poucos de homens escreveram há milénios alimentou séculos e séculos de sexismo. É perturbador perceber que tantos dos nossos contemporâneos abraçam a lógica desses antigos argumentos e usam-na com satisfação para subjugarem as mulheres em nome de um bem qualquer.
Se o conhecimento é poder, compreender as fontes antigas da misoginia corrente talvez ajude na luta contra estes homens conservadores e as suas falsas noções de bem.
(tradução adaptada minha)
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.