No Expresso foi publicada por estes dias uma entrevista de Manuel F. C. Esperança, Director da Escola José Gomes Ferreira. Curiosamente é director da escola cujo patrono foi o autor do primeiro livro, como eu dizia então, “sem bonecos”, que li na vida: “As aventuras de João Sem Medo”. Estava a ler a entrevista e lembrei-me imediatamente desse livro surrealista, mas que me marcou imenso e a que voltei inúmeras vezes. Manuel Esperança é, como eu, director de uma escola mas aquilo que diz assume relevância especial por ser presidente do Conselho de Escolas (que, com rigor, deveria ser chamado Conselho dos Directores de Escolas). Por isso, deveria ter cuidado com o que diz e não confiar demasiado na sua longa experiência para falar de coisas que exigem estudo sistemático mais que conhecimento baseado no senso comum.
Muito se poderia comentar sobre as suas respostas que, além disso, incluem a sensação de que é alguém pouco acostumado a lidar com a comunicação social e que ficou deleitado e entusiasmado com o microfone amplificado que agora possui, rendendo-se aos soundbytes.
O mais chocante de tudo foi a resposta que deu à pergunta: Gostava de escolher os professores? Este tema da escolha é típico dos ambientes liberais e escolher, em si mesmo, não tem mal nenhum (bem antes pelo contrário). Aliás, o escriba deste texto, que se considera um liberal (no sentido americano do termo), é conhecido entre os seus alunos e colegas por uma frase tema que é “Quem escolhe o seu caminho não tem de se lamentar”. Curiosamente essa frase foi impressivamente adquirida na leitura daquela obra do comunista José Gomes Ferreira, em que o protagonista foge de uma terra em que todos se lamentam e choram para viver uma vida aventurosa e livre e, a dada altura, tem de escolher entre caminhos com pedras que mordem e alternativas mais fofas mas que obrigam à remoção do cérebro (leiam o livro e deleitem-se com a cena).
Escolher professores nas escolas. Trará assim tão bons resultados?
No caso de Manuel Esperança desespera ver que escolheu o caminho da asneira, o que se lamenta em quem também me representa. Mas isso é o que acontece a quem lê a cartilha liberal pela metade e só apanha parte da música, esquecendo que, além da escolha ilimitada, há o bem comum. Mas comentemos o que respondeu.
Respondeu então assim (e numero as frases, para melhor as comentar):
(1) Sim, gostava de o poder fazer. Essa é a grande diferença entre o ensino público e o privado e iria trazer vantagens. (2) Temos de ser competitivos. E a verdade é que há pessoas que nasceram para dar aulas e outras, que mesmo ajudadas, não fazem nada para isso. (3) O concurso de professores não faz a distinção do trigo do joio.
Na primeira frase evidencia-se a pouca preparação da entrevista. Uma questão cujo verbo é gostar não precisa de ser respondida nesse nível do gosto. Se me perguntarem “Gostou de ler a entrevista de Manuel Esperança?” posso responder “Gostei”, “Não gostei” (o que se verificará que é realmente a única resposta não hipotética) ou, ser racional, e responder, fora do nível do gosto individual, e dizer “Foi uma entrevista de uma pessoa responsável que evidenciou pouca preparação para falar de assuntos de nível nacional complexos”. O nível do gosto é fulanizado e pouco “competitivo”. E como Manuel Esperança sabe, com certeza, a colocação de professores é uma questão historicamente muito relevante, antiga, complexa, operacionalmente difícil de abordar e cujo sistema de execução não pode mudar apenas para lhe fazer o gosto.
Nessa primeira frase, também aparece uma afirmação gongórica e que ainda para mais é falsa. A grande diferença entre o ensino público e o privado não é a selecção dos professores, é a origem dos alunos (que escolhem um e são encaminhados para outro) e a origem do dinheiro que paga o sistema (no público, os impostos e que, no privado, devia ser o contributo das famílias que optam por escolher algo diferente da oferta pública gratuita, assegurada pelos impostos). E privado tem dono, no público o dono está sujeito a regras legais mais estreitas porque é o conjunto dos cidadãos.
Sobre as vantagens da sua escolha nada diz mas sobre as desvantagens sempre poderei dizer que um concurso local para cada lugar docente do país seria sempre mais caro e pior de operacionalizar que um concurso regional ou nacional.
Na segunda frase, aparece outro leitmotiv típico dos novos líderes educativos que repentinamente começaram a descobrir temas como a competitividade e a escolha. Pois temos de ser competitivos, mas num país que precisa de 150 mil docentes para cobrir o território será duvidoso que se consiga arranjar tantos que tenham nascido para isso.
Por isso é que leccionar é uma profissão: aprende-se. Dar entrevistas não é profissão e, por isso, é que há alguns que nascem para isso e outros, nem que os ajudem, conseguem acertar nas respostas.
O trigo e o joio: o senso comum vs. o conhecimento do real
A terceira frase sintetiza a linha de pensamento e é o culminar da asneira. A metáfora agrícola da separação do trigo e do joio esconde a profunda superficialidade da opinião que o seu autor evidencia sobre os concursos de professores.
O sistema de concursos de professores prejudicou-me muito. Porque "não nasci para dar aulas", fiz um curso científico de História e só escolhi a profissão mais tarde. Assim, o meu tempo de serviço antes de estágio é contado pela metade. Mas são as regras e são para todos. Pessoas que estudaram ao mesmo tempo que eu na mesma faculdade começaram a leccionar ao mesmo tempo mas tem mais 4 valores na graduação para selecção. Como escolhi não fazer o estágio integrado não me lamento. Mas podia vir aqui queixar-me do concurso nacional pela via umbiguista de que gostava de ter mais uns pontitos….
Ora, esse é o problema do Senhor Presidente do Conselho de Escolas. O seu eventual gosto em vir a escolher professores fá-lo esquecer que escolher professores numa escola não é um problema de gosto individual, mais ou menos arbitrário, mas de bem comum. Por isso, é preciso haver critérios. E se correr o mundo vai ver que o problema de escolher professores para uma escola se resume a dois critérios: a experiência que têm e a formação que têm. Quanto mais experiência melhor e quanto mais formação melhor. Foi este o ponto de partida de quem inventou a fórmula que rege o concurso de professores nacional que é compartimentado pelas disciplinas que os professores vão leccionar. Assim, se o Senhor Presidente do Conselho quer escolher tem de sempre ir parar a isto: formação para a leccionação específica e experiência. Não é possível medir coisas como a resistência psicológica a alunos difíceis ou a adaptação a meios sociais mais seleccionados e colocar isso numa fórmula operativa e que permita um concurso sério e expedito para seleccionar. É que concurso significa escolha mas não significa escolha arbitrária ou aleatória. O concurso de professores sempre será um concurso de massa, isto é, a que concorre muita gente daí que além dos seus objectivos na determinação dos seus procedimentos se tenha de levar em conta o tamanho do processo.
Hoje já há concursos locais. Sou director de uma escola TEIP em que a selecção é feita com base em critérios elaborados pela escola e, noutras escolas, as ofertas de escola são do mesmo modelo. Na minha escola, depois de aturado estudo (de semanas), concluímos que os únicos critérios sérios são os que incluam numa fórmula tempo de serviço (experiência) e nota de cursos formativos. Assim, os nossos concursos praticamente reproduzem, com 2 ligeiras adaptações, a fórmula do concurso nacional.
Noutras escolas não é assim, e com todo o respeito pelos meus colegas directores, que pensam o contrário, tenho sérias dúvidas que um tribunal administrativo aceitasse como critério legal ou constitucionalmente adequado “ter estado ao serviço no ano anterior naquela escola” ou, como consta que acontece, “residir na área da escola”.
Os critérios a colocar num concurso têm de ser objectivos e intrínsecos ao candidato. Ora, os únicos que passam esta barreira são os que tenham a ver com formação e experiência. Coisas abstrusas como motivação não passam um crivo legal que é baseado na equidade entre candidatos e na protecção contra a arbitrariedade. Até porque a panaceia das entrevistas de selecção esconde o facto de que há profissionais disso que parecem motivados na entrevista e são joio na prática. Posso, por exemplo, não parecer muito motivado face ao critério do “nascimento para a coisa” que Manuel Esperança enunciou mas os meus alunos testemunharão que não fui, com certeza, o pior professor que tiveram.
As desvantagens dos concursos de escola
Assim, os critérios do concurso nacional sempre poderiam ser melhorados (como tudo na vida) mas dificilmente podem ser totalmente afastados, por razões legais.
Como o número de candidatos é muito elevado a selecção local nas escolas torna-se cara, pouco operativa e gera repetição de operações. Assim, já este ano seleccionei candidatos que, antes de o serem na minha escola, tinham concorrido a 104 concursos de outras (entregando documentos e gerando actos dos seleccionadores). Já tive concursos de oferta de escola com 1200 e mais candidatos (as listas podem ser consultadas em www.escolasdarque.com), operações que consumem horas, sem vantagem significativa e que podiam ser agregadas a unidades de gestão maiores (por exemplo, regiões). E a verdade é que, como todas as escolas seleccionam mais ou menos ao mesmo tempo no início do ano, é melhor um concurso geral uniforme que mini-concursos locais dispersos e com critérios todos diferentes. O tempo que os candidatos perdem é infindo, as escolas perdem tempo que faz falta para gerir a sua actividade, no final o resultado é percepcionado como injusto, está sujeito a críticas de falta de transparência e até nem traduz grande escolha (porque que escolha há, quando se selecciona o nº 35 de uma lista de 450, porque do 1 ao 34, não aceitam por já estarem noutra escola…?).
Isto são as questões práticas que a trincheira desta guerra ensina e que afastam o dogma da escolha como base desta reflexão. Valerá a pena insistir no dogma quando um concurso local custa caro, demora dias a fazer e resulta num final injusto?
A discussão das malfeitorias do concurso nacional (ou não localizado) e da sua pouca capacidade para produzir cereais de qualidade resulta de observações de senso comum que não resistem a análises de gestão científica (nomeadamente no domínio dos custos). Na verdade, quem quer localizar os concursos nas escolas, quer poder sobre os professores e lança uma forma de deslocar a questão da gestão para um factor externo. Em vez de melhorar os professores, vamos seleccioná-los a priori e com tendências fatalistas (“os que nasceram para isto”). Se o Senhor Presidente do Conselho passasse por alguns critérios que alguns usariam não ía gostar. E o concurso nacional escolhe: quem tem mais experiência e formação, conjugadas numa determinada fórmula, pode ser preferido na escolha pelas escolas que vários escolhem em paralelo. É só escolha como vê…..
E a verdade é que algumas experiências localizadas de escolha pelas escolas evidenciam falta de transparência e alguma aleatoriedade que não traduz melhorias.
Por isso, devolvo a Manuel Esperança a expectativa de que, ao emitir opiniões sobre questões como esta, me represente melhor como Director e em vez do senso comum (das expressões proverbiais e da superficialidade da opinião gasosa) pense como gestor que conhece a história e realidade do sistema e não como político atrás de soundbytes.
Luís Sottomaior Braga
Professor de História do ensino básico, Director de um agrupamento de escolas com formação especializada em Administração Escolar e Gestão Pública e o Curso de Alta Direcção em Administração Pública