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... a não ser com pessoas que nos fazem felizes, digo eu, porque isso atenua a desilusão de vermos os lugares realmente transformados para pior e estragarmos as memórias poéticas que deles temos. Falo desta casa que agora se chama restaurante em Cacelha-a-Velha e culpo um indíviduo que escrevia uma crónica gastronómica num jornal de um dia ter, infelizmente, descoberto o sítio e a casa e ter escrito sobre ela no jornal. No ano seguinte, quando lá fomos, já estava assim cheio e com filas intermináveis de carros e pessoas. Nunca mais lá fui mas vou perguntando a quem sei que passa por lá, se a casa já voltou ao que era. Não, está assim para ficar.

 

Durante mais de dez anos (isto há mais de vinte e cinco anos) fomos ali religiosamente, no Verão. Nos quinze dias que passávamos no Algarve (quando as aulas passaram a começar em Setembro porque quando começavam depois do feriado da República íamos para lá todo o mês de Setembro, quando não havia praticamente turistas e tudo era sem facilidades mas selvagem e fabuloso) íamos lá duas ou três vezes. Chegava-se lá por uma estradinha de terra batida sempre deserta e íamos com o carro até a uma sombra quase no largo da igreja, também sempre deserto. A casa abria as portas às quatro da tarde, que era quando o homem vinha do mar com a comida para o dia, de modo que saíamos da praia às três e meia (às vezes passávamos por casa para tomar um duche por causa do sal) e íamos directamente para lá. O homem tinha dois filhos aí pelos dez, onze anos e como nunca soubémos o nome deles e a casa não tinha nome na porta dizíamos, 'hoje vamos aos putos'. Chegávamos lá e enquanto o homem abria as ostras, punha as amêijoas, cadelinhas e camarões a fazer, nós ajudávamos os putos a trazer as coisas da cozinha para a mesa (nessa altura só havia duas mesas muito grandes corridas cá fora e nós enchíamos uma) e assávamos um chouriço que eles traziam numa canoa com o álcool que se comia com um pão fabuloso, mais para os miúdos, que estavam sempre mortos de fome mas também para nós. Depois ele trazia camarões, cadelinhas, mas o que era bom mesmo eram as ostras - quase todas para mim que os outros não as apreciavam muito. Eu comia-as à larga, cruas, só com pimenta e umas gotas de limão. Já comi ostras em muitos sítios, países e continentes mas nenhumas eram como as ostras dos putos de Cacela-a-Velha- e as amêijoas. Mandávamos vir travessas de amêijoas ao natural, à Bulhão Pato, até nos fartarmos. Tudo acompanhado de um vinho branco ou verde que ele lá tivesse e que era sempre bom. Íamos ficando por ali à conversa, umas horas, até o sol começar a esmorecer, enquanto os miúdos brincavam por ali. Aquilo sempre deserto. De vez em quando aparecia um casal de turistas daqueles que gosta de explorar sítios desconhecidos, olhavam para a nossa mesa e iam sentar-se na outra e depois ficavam doidos com as ostras, as amêijoas, o pão, os camarões, as cadelinhas, tudo por preço rídiculo... depois passávamos a vê-los ali de vez em quando. Tenho fotografias tiradas ali nessas tardes que se espraiavam até ao sol começar a descer com uma sensação de paz e contentamento naquela quietude que têm as tardes de Verão no Algarve e no Alentejo em que a vida parece parar e tudo é um contraste de luz e sombra.

Agora está isto que se vê. Montes de gente, uma barulheira que choca com o caiado puro das casas e dúvido que as ostras sejam as mesmas. Nunca mais lá fui nem sei se quero ir...  

 

 fotografia do blog mapas e papas

 

publicado às 22:21


Nunca mais fomos aos putos...

por beatriz j a, em 15.08.15

 

 

 

Quando era muito mais nova, há mais de vinte anos, tínhamos o costume, quando vínhamos aqui para o Algarve, de sair da praia, uma vez por semana, lá pelas quatro da tarde e ir directamente aos putos comer ostras. Os 'putos' eram dois miúdos que ajudavam o pai com as ostras, as amêijoas, os camarões e outras coisas necessárias. 

 

Chegávamos a Cacela-a-Velha e às vezes ainda a porta estava fechada. Dávamos uma volta à Igreja, espreitávamos lá para baixo para a praia deserta (onde íamos de vez em quando) para ver se já vinham a caminho com as ostras acabadas de apanhar. Tirava umas fotografias ao largo, ao forte, à ria, aos miúdos a brincar.

 

Assim que chegavam carregados e abriam a porta entrávamos com o homem e os dois putos e íamos à cozinha buscar os pratos, os copos, etc. Trazíamos para uma das duas únicas mesas que a tasca tinha, na rua, uma de cada lado da porta, enquanto o homem abria as ostras e fazia as amêijoas e os camarões. Assávamos um chouriço na brasa para os miúdos, comíamos pão e azeitonas. Entretanto os putos traziam as ostras abertas e iam trazendo amêijoas, umas só cozidas, outras à Bulhão Pato. As ostras era só deitar-lhes um bocadinho de pimenta e uns esguichos de limão e engoli-las limpinhas a saber a mar. Ficávamos por ali a petiscar e a conversar até ao entardecer enquanto os miúdos brincavam no largo da igreja. Não se via vivalma.

 

Há uns quinze anos ou talvez mais, chegámos um dia à estradinha que vai dar ao largo da igreja e ficámos estupefactos ao vê-la entupida de Audis e outros que tais. Uma fila interminável à porta dos putos. Alguém nos disse que um tipo qualquer (um verdadeiro idiota que merecia levar uma surra...) tinha descoberto os putos e achou giro escrever sobre as ostras no Expresso (acho). Ainda lá fomos passados uns três anos ver se tinha melhorado, se se tinham esquecido dos putos, mas não, tinham agora mais mesas, gente em pé à espera e, do outro lado do largo, havia nascido um restaurante feio cheio de gente à porta. O largo da igreja, sempre de silêncio caiado de branco estava numa barulheira de vozes e motores.

 

Descobrimos entretanto um outro sítio para essas tardes de sair da praia cheios de sal e ir aos petiscos no vagar de ver o entardecer chegar [desse sítio não digo nada] mas nunca mais fomos aos putos. 

 

 

publicado às 08:47


no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau. mail b.alcobia@sapo.pt

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