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Como um refrão

por beatriz j a, em 20.06.18

 

 

Nós nunca nos realizamos.


Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.

 

publicado às 18:23


do Livro do Desassossego

por beatriz j a, em 20.06.18

 

 

Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que e a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.

 

Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que os meus números cuidadosos puseram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços a régua e de letra, inclui

também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.

 

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

 

Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negócios com todo o Estado: "você é explorado, Soares". Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível.

 

 

Nós nunca nos realizamos.


Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.

 

publicado às 18:17


Chove muito, mais, sempre mais...

por beatriz j a, em 26.03.17

 

 

Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma […] que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.

 

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.

 

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa.

 

 

publicado às 18:59


Do Livro do Desassossego

por beatriz j a, em 06.06.15

 

 

 

15-5-1930

 

Uma vista breve de campo, por cima de um muro dos arredores, liberta-me mais completamente do que uma viagem inteira libertaria outro. Todo o ponto de visão é um apice de uma pyramide invertida, cuja base é indeterminável.

 

Bernardo Soares (Fernando Pessoa heterónimo)

 

 

publicado às 22:59


Dias de Desassossego

por beatriz j a, em 03.03.15

 

 

 

Bernardo Soares
 
 
A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de vista estético,
 
L. do D.

 

 

A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

 

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

 

 

publicado às 05:57


'Tra la notte che cessa'

por beatriz j a, em 04.11.14

 

 

 

«Tra la notte che cessa
e l’inizio del giorno,
il mio cuore ha urgenza
della tua nostalgia.»


Bernardo Soares (Fernando Pessoa), “Il libro dell’inquietudine”.

 

(ler a poesia noutra língua para experimentar outro ritmo de emoções)

 

 

publicado às 05:26


Dias de Desassossego

por beatriz j a, em 02.06.14

 

 

 

Bernardo Soares

A leitura dos jornais, sempre penosado ponto de ver estético,

L. do D.

 

A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

 

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

 

 

publicado às 15:16


Dias de Desassossego

por beatriz j a, em 02.06.14

 

 

 

Bernardo Soares

A história negas as coisas certas.

L. do D.

 

A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.

 

Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!

 

publicado às 14:56


Dias de Desassossego

por beatriz j a, em 02.06.14

 

 

 

Bernardo Soares

...e as algas como molhados cabelos empastando o rosto...

...e as algas como molhados cabelos empastando o rosto morto das águas.

Um som suave de rio largo, uma indecisa frescura aquática, uma saudade audível, oculta, um amarelo morto de movimento.

 

Leves, leves as sombras calmas.

 

A noite era cheia daquelas pequenas nuvens muito brancas, que se destacam umas das outras. Vista através de uma ou outra delas, a Lua tinha em seu torno um halo azul, castanho e amarelo, com uns tons supostos de verde-vivo. Entre as árvores o céu era dum azul-negro profundíssimo, longínquo, irrevogável. As estrelas viam-se ora através das nuvens, ora, muito longe, mas entre elas. Uma saudade de coisas idas, de grandes passados da alma, talvez porque em reencarnações antigas, olhos nossos, no corpo físico, houvesse visto, este luar sobre florestas longínquas, quando selvática ainda, a alma infanta talvez pressentia, por uma memória em Deus ao contrário, no futuro das suas reencarnações, esta lua retrospectiva. E assim essas duas luas davam mãos de sombra por sobre a minha cabeça abatida.

 

 

publicado às 14:55

 

 

 

Hoje são pensamentos poéticos ou poesia em prosa... sei lá... do Livro do Desassossego

 

 

A noite invadia lentamente a minha inatenção. Despertei de repente para a ver entrada. Flutuavam ainda, nas indecisões da Natureza, ruídos incertos como se as coisas compusessem o manto para adormecer.

Tive um outro intervalo comigo próprio. Tornei a meditar sem saber em quê. Quando de novo despertei o silêncio era absoluto — logo invisível de todos os meus sonhos idos e das minhas esperanças mortas, e a minha consciência da vida afundava-se lentamente nele, assumindo, à medida que se afundava, noções novas de possibilidades de compreender a vida sob outros aspectos, vagos terrores e interiores.

As casas eram grandes jazigos impossíveis. As árvores, no seu alinhamento ao longo da avenida, vagas atitudes despidas de nos poderem dar qualquer ideia de vegetais.

Tive de repente uma sensação ampla e absurda — a de que eu era um mar, ou o traço de um mar, que a vaga proa de não sei que navio vinha erguidamente abrindo.

Pareceu-me que me dividia e que através do meu dividir, me passavam sensações de outras coisas e que essas sensações por me dividirem no passar, não eram sentidas por mim.

Acabou tudo como uma rua quando viramos a esquina. Tive uma dificuldade física em me crer existente. Para além da linha dos cimos dos prédios olhava a […]

 

publicado às 23:28


Manipansos

por beatriz j a, em 21.02.13

 

 

 

 

 

Francisco Fernandes, assina como Xicofran. Nasceu em Luanda, Angola em 1969.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bernardo Soares

A história negas as coisas certas.

L. do D.

 

A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.

 

Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!

 

Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.

 

 

publicado às 05:49


Do livro do Desassossego

por beatriz j a, em 27.02.12

 

 

 

 

 

 

15.

      Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu. Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo. Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.

 

 

20.

      Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstâncias, me tem sucedido, quando quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me subitamente cercado por outras da mesma ordem, como se houvesse definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas. Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que me quase estrangulo.

 

68.

     O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
     A consciência da inconsciência da vida é o maior martírio imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes — brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.

 

publicado às 19:43


do livro do desassossego

por beatriz j a, em 20.11.10

 

 

 

“O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio.”

 

Bernardo Soares

 

publicado às 19:59


do livro do desassossego

por beatriz j a, em 23.09.10

 

 

 

Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser família.

Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho.

Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim.

Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que os outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros.

Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.

Saber bem que quem somos não é connosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis - saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?

Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara - dominó sem graça - caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando. Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um lugar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...

 

Bernardo Soares

 

 

publicado às 07:15


o patrão vasques tem muitos nomes...

por beatriz j a, em 03.01.10

 

 

 

O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um individuo doente e a familia. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse individuo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio veio-lhe a sensibilidade. (...) «Tenho pena do tipo», disse-me ele. Depois acendendo o charuto, acrescentou: «Em todo o caso, se ele precisar alguma coisa de mim (...) eu não esqueço que lhe devo um bom negócio (...)»

 

O livro do Desassossego, Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

 

 

publicado às 20:12


no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau. mail b.alcobia@sapo.pt

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