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no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau
... a não ser com pessoas que nos fazem felizes, digo eu, porque isso atenua a desilusão de vermos os lugares realmente transformados para pior e estragarmos as memórias poéticas que deles temos. Falo desta casa que agora se chama restaurante em Cacelha-a-Velha e culpo um indíviduo que escrevia uma crónica gastronómica num jornal de um dia ter, infelizmente, descoberto o sítio e a casa e ter escrito sobre ela no jornal. No ano seguinte, quando lá fomos, já estava assim cheio e com filas intermináveis de carros e pessoas. Nunca mais lá fui mas vou perguntando a quem sei que passa por lá, se a casa já voltou ao que era. Não, está assim para ficar.
Durante mais de dez anos (isto há mais de vinte e cinco anos) fomos ali religiosamente, no Verão. Nos quinze dias que passávamos no Algarve (quando as aulas passaram a começar em Setembro porque quando começavam depois do feriado da República íamos para lá todo o mês de Setembro, quando não havia praticamente turistas e tudo era sem facilidades mas selvagem e fabuloso) íamos lá duas ou três vezes. Chegava-se lá por uma estradinha de terra batida sempre deserta e íamos com o carro até a uma sombra quase no largo da igreja, também sempre deserto. A casa abria as portas às quatro da tarde, que era quando o homem vinha do mar com a comida para o dia, de modo que saíamos da praia às três e meia (às vezes passávamos por casa para tomar um duche por causa do sal) e íamos directamente para lá. O homem tinha dois filhos aí pelos dez, onze anos e como nunca soubémos o nome deles e a casa não tinha nome na porta dizíamos, 'hoje vamos aos putos'. Chegávamos lá e enquanto o homem abria as ostras, punha as amêijoas, cadelinhas e camarões a fazer, nós ajudávamos os putos a trazer as coisas da cozinha para a mesa (nessa altura só havia duas mesas muito grandes corridas cá fora e nós enchíamos uma) e assávamos um chouriço que eles traziam numa canoa com o álcool que se comia com um pão fabuloso, mais para os miúdos, que estavam sempre mortos de fome mas também para nós. Depois ele trazia camarões, cadelinhas, mas o que era bom mesmo eram as ostras - quase todas para mim que os outros não as apreciavam muito. Eu comia-as à larga, cruas, só com pimenta e umas gotas de limão. Já comi ostras em muitos sítios, países e continentes mas nenhumas eram como as ostras dos putos de Cacela-a-Velha- e as amêijoas. Mandávamos vir travessas de amêijoas ao natural, à Bulhão Pato, até nos fartarmos. Tudo acompanhado de um vinho branco ou verde que ele lá tivesse e que era sempre bom. Íamos ficando por ali à conversa, umas horas, até o sol começar a esmorecer, enquanto os miúdos brincavam por ali. Aquilo sempre deserto. De vez em quando aparecia um casal de turistas daqueles que gosta de explorar sítios desconhecidos, olhavam para a nossa mesa e iam sentar-se na outra e depois ficavam doidos com as ostras, as amêijoas, o pão, os camarões, as cadelinhas, tudo por preço rídiculo... depois passávamos a vê-los ali de vez em quando. Tenho fotografias tiradas ali nessas tardes que se espraiavam até ao sol começar a descer com uma sensação de paz e contentamento naquela quietude que têm as tardes de Verão no Algarve e no Alentejo em que a vida parece parar e tudo é um contraste de luz e sombra.
Agora está isto que se vê. Montes de gente, uma barulheira que choca com o caiado puro das casas e dúvido que as ostras sejam as mesmas. Nunca mais lá fui nem sei se quero ir...
fotografia do blog mapas e papas
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