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no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau
Uma pessoa está mais de vinte anos sem ir a um médico a não ser aqueles dois que tem mesmo que ser, tipo o dentista e isso, sem entrar num hospital e sem tomar medicamentos. Nem sequer tem uma gaveta de medicamentos. Lembro-me de ter, literalmente, um termómetro dos antigos com mercúrio, uma caixa de aspirinas, uma de dimicina, uma bisnaga de hirudóide e uns pensos rápidos. Mais nada. Nem sequer conhecia nomes de medicamentos vulgares. Enquanto o meu filho era pequeno, de cada vez que estava doente comprava os medicamentos que o médico mandava e depois aquilo gastava-se e pronto.
Agora é isto. Uma gaveta cheia de medicamentos, mais os que não cabem na gaveta, fora os da cozinha, que estou a tomar e os que estão no quarto... ahh e o saco para onde atiro os exames e relatórios médicos que são às dezenas, pois neste último, quase um ano, fiz o quê...? Deixa ver... biópsias e endoscopias com biópsia, meia dúzia, electrocardiogramas, ressonâncias magnéticas, radiografias, quase três dezenas no acelerador linear, uma PET, TACs...? ohh, sei lá... uma dúzia, quase todas com contraste... os tratamentos, claro, que são na ordem das dezenas, os de químicos todos endovenosos (o tratamento da químio eram quatro horas a enfiar cenas no corpo e quando era a vez do saco do medicamento que levava duas horas a despejar, o braço onde o injectavam ficava tão frio, gelado, que parecia ir cair como nos desenhos animados ou o homem gelo no filme do batman) e análises ao sangue contam-se já pela centena... embora as análises não as guarde a não ser as últimas, umas primeiras que fiz pelas quais tenho estima (sim, sim, estima) e mais uma ou duas importantes. E os medicamentos que já tomei devem estar na ordem do milhar. [um aparte - acho que as Bayers e outras multinacionais farmacêuticas desincentivam a investigação de cura do cancro porque isto é uma mina de ouro. Milhões de pessoas no mundo a dependerem de medicamentos todos os dias.]
Outro dia uma colega disse-me que tinha feito dois exames e duas análises ao sangue para despistar um problema e que já não podia ver hospitais, médicos e técnicos à frente. lol Já outra vez uma pessoa conhecida me dizia, 'fiz uma TAC em que injectam um líquido qualquer (iodo... radioactivo) e a Beatriz nem imagina! Aquilo foi horrível.' lol Nem lhe disse nada :))
A minha vida agora é andar em hospitais. Ontem estive no hospital, hoje fui ao hospital fazer um ecocardiograma a amanhã vou ao hospital fazer tratamento.
Enfim, e de cada vez que passo por este caos de medicamentos penso que tenho que organizar aquilo mas quero lá saber de organizar medicamentos... não sou farmacêutica.
É isto, como a vida de uma pessoa muda radicalmente em menos de um ano.
Claro, no meio das coisas más descobrem-se coisas boas. Uma das minhas irmãs vem sempre comigo, não falhou um único tratamento e até nas endoscopias/biópsias esteve comigo e tem passado secas monumentais por causa de mim, para além de me ter apanhado nos piores momentos quando os tratamentos foram tão agressivos, os de final de Julho e os de Agosto, que houve ali uma semana que se não fosse ela e o meu amigo André eu não tinha ido fazer os tratamentos. E os maus momentos também ela os sentia um bocado por estar comigo. Aquelas quatro horas da químio passavam mais depressa e custavam menos por causa dela. Houve dias em que ríamos tanto, de parvoíces e a lembrar de coisas da infância, que as pessoas ficavam a olhar com aquela cara de, 'aquela deve ser maluca, como é que está ali com cinco sacos pendurados para injectar no braço e ri como se estivesse na esplanada ao sol ou assim?'
Estas coisas que fazem por nós não têm preço.
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