Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]





contra o deslumbramento e a fatalidade

por beatriz j a, em 30.09.10

 

 

Será o deslumbramento uma política?

por MANUEL MARIA CARRILHO

 

 

Quando procuramos o traço que melhor revela hoje a incapacidade das lideranças políticas, é sem dúvida no deslumbramento que a encontramos. Num deslumbramento que consiste numa grave perturbação da visão, seja ela provocada pela falta de distância ou por um excesso de luz. O deslumbramento é sempre a outra face de uma ofuscação, de um dogma, de uma cegueira. O deslumbrado olha, mas é incapaz de ver.

Quando hoje analisamos a crise que temos vivido nos últimos anos, percebe-se que não foi por falta de saber que não se viu o que lá vinha, mas por excesso de deslumbramento: porque o deslumbramento desvaloriza a prudência, inutiliza o conhecimento e dilui o saber.

E esta crise foi, em grande medida, a consequência de um duplo deslumbramento: com a nova finança e a sua delirante criatividade, com as novas tecnologias e as suas mirabolantes promessas, que se impuseram com uma tóxica cumplicidade.

Foi este duplo deslumbramento que cegou e manietou tanta gente. E é ainda ele que, hoje, leva muitos a pensar que será com a retoma dos factores que provocaram a crise que se sairá dela. Isso acontece porque o deslumbramento, ao desprezar o passado e ao ignorar o futuro, vive e faz viver num presente completamente virtual.

Num presente que é feito de activismo sem estratégia, colado a um imperativo de modernidade que se apresenta como um acelerador de tudo, mas que, na realidade, ninguém vislumbra ao que conduz. Ser moderno tornou-se simplesmente nisto, em ser deslumbrado!...

Daí a importância das estatísticas; elas insinuam hoje que, no universo do deslumbramento, os números são o único valor incontroverso. Elas apresentam os números como se eles garantissem a transformação instantânea da quantidade em qualidade. E falam das políticas "de resultados" como se os meios não contassem, escondendo sempre o essencial: isto é, que ao lado do significado dos números existe também a insignificância dos números. Que para lá do que eles dizem, está sempre o que eles omitem.

Os deslumbramentos financeiro e tecnológico são na verdade um só, que se revela na proclamação da modernidade como um puro fatalismo, como um processo independente das escolhas colectivas ou das decisões individuais, como se o seu objectivo fosse apenas o de tudo adequar a um processo histórico supostamente inelutável.

Compreende-se assim que o deslumbramento desmagnetize a sociedade e desvitalize a política, aproximando-nos da profecia de Jean Baudrillard, que há anos antecipou que o objectivo da classe política seria cada vez mais, não o de governar, mas o de "manter a alucinação do poder", confundindo países reais com miragens tecnológicas. O que, naturalmente, leva a que a sociedade olhe cada vez mais para tudo isto como uma - ora indiferente, ora insuportável - amálgama de palavras, de imagens e de vazio.

O deslumbramento tecnológico-financeiro tornou-se, deste modo, o grande impulsionador das principais formas de demagogia do nosso tempo, sejam as do optimismo tão virtual como pueril, sejam as do pessimismo tão nostálgico como catastrofista.

E não vejo modo mais eficaz de as contrariar do que o de uma renovada pedagogia que introduza - na vida, na política e nos media - mais conhecimento, mais diálogo e mais proximidade. E também tempo, sim, tempo, porque o curto-termismo é o carrossel de todos os deslumbrados.

Tudo isto faz cada vez mais da história o argumento, o conhecimento decisivo para contrariar os efeitos do deslumbramento e da sua demagogia. Só a história perspectiva o presente, revelando a sua contingência, mostrando que o que aconteceu podia não ter acontecido, ou ter acontecido de outra forma. Que na vida e no mundo tudo resulta sempre da conjugação da imprevisibilidade dos factos, da multiplicidade dos interesses, da diversidade dos contextos e das opções dos cidadãos. Que há sempre soluções quando há visão.

Contra a fatalidade, a história. Contra o deslumbramento, a lucidez. Contra a demagogia, a pedagogia. Contra os impasses do optimismo e do pessimismo, o realismo. Contra o curto-termismo, o médio e o longo prazo. Contra a pasmaceira, o sentido de futuro.

Eis do que precisamos, se queremos ter de novo uma finança ao serviço da economia, novas tecnologias ao lado da emancipação dos cidadãos e uma política que abra horizontes e crie de facto alternativa.

 


publicado às 09:26


Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.



no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau. mail b.alcobia@sapo.pt

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.



Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D


subscrever feeds


Pesquisar

  Pesquisar no Blog

Edicoespqp.blogs.sapo.pt statistics