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no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau
Hoje, depois de ouvir alguns discursos políticos num dos telejornais dei comigo a reler A Ascensão Da Insignificância do Castoriadis. E foi a reler essa entrevista, de 1993, que percebi o que me tem andado a incomodar.
Castoriadis fala da decadência da civilização e pergunta se será possível esta sociedade continuar a funcionar e reproduzir-se, “quando em todas as sociedades ocidentais se proclama abertamente (e em França, cabe aos socialistas a glória de o terem feito de um modo que a direita nunca tinha ousado fazer) que o único valor é o lucro e que o ideal de vida social é o enriquecimento."
Se assim fosse – diz ele – os funcionários deviam aceitar e pedir umas cunhas para efectuarem o seu trabalho, os juízes deviam leiloar as decisões dos tribunais, os educadores fornecer boas notas às crianças cujos pais lhes oferecessem um cheque à socapa e assim por diante. Em sua opinião só o medo da sanção penal os impede de assim proceder.
Castoriadis diz nesta entrevista que nunca como hoje foi tão urgente reinventar a sociedade, imaginar um outro sentido para a sua existência. E acaba este parágrafo com as seguintes palavras: “ O que podemos dizer é que todos aqueles que têm consciência do carácter terrivelmente grave do que está em jogo devem tentar falar, devem criticar esta corrida para o abismo, devem procurar despertar a consciência dos seus concidadãos”.
Ora, foi justamente aqui no fim do parágrafo que me apercebi do que tem andado a incomodar-me.
Não é a constatação de que vivemos uma daquelas épocas históricas em que os insignificantes saltaram para dentro da carroça, tomaram conta das rédeas e conduzem-na agora pela ribanceira abaixo em direcção ao desastre: isso é evidente de há uns anos a esta parte; não é a constatação do modo como imprimiram uma dinâmica de mediocridade a toda a sociedade, parecendo ter o condão de trazer ao de cima, apenas e somente o que de pior há nas pessoas; não, não é isso.
É a constatação da complacência com que a nossa (pseudo) intelectualidade assistiu, e em alguns casos aplaudiu até, o trabalho de perversão e destruição do sistema judicial, do sistema educativo público e do sistema de saúde pública. É isso o que me choca! Comentadores, opositores, meios de comunicação, gente que ocupa cargos de influência política, nas universidades, nas empresas públicas, nos jornais e nas televisões a louvarem o trabalho de sistemática decomposição da sociedade que tem sido a obra de, pelo menos, há uns dez anos para cá.
Das duas, uma: ou não tinham e não têm a consciência de que fala Castoriadis (como é possível?); ou, se a tinham, porque não falaram? Se calhar não tinham mesmo.
Temos agora um sistema judicial em quem ninguém acredita por conta da impunidade que por aí grassa; um sistema educativo onde proliferam os colégios privados para os bolsos só de alguns, depois de se ter destruído o ensino público (esse trabalhinho, aliás, ainda não está completamente acabado – mas está quase), e um sistema de saúde na ruína, que se orgulha de ter os bebés a nascer no meio da estrada. Também aí proliferam os hospitais privados - para quem pode. A banca enriquece, os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres. No Natal diz-se ao povo que a culpa da crise reside no apetite dos portugueses que gastam dinheiro a comer demais!
A Hanna Arendt dizia que os povos têm os governantes que merecem.
Pelos vistos têm também os intelectuais que merecem.
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