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no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau
Então não é que o Silva Lopes anda por aí a defender que se deve congelar os salários dos trabalhadores para pagar a crise? Quer dizer, políticos, economistas, patos-bravos e banqueiros roubam biliões em meia dúzia de anos. Continuam com os biliões roubados em contas secretas, e propõem roubar ainda mais para pagar a crise! E, entretanto, ficamos a saber que os eurodeputados (que já ganham pouco, coitados - ele é ordenadão+casa+colégios pagos+viagens+ajudas de custo disto e daquilo) vão ser aumentados para o dobro do ordenado actual. Lindo! Perfeito! Pois é evidente que, para uns dobrarem os ordenados, os outros têm que ficar com eles congelados, ou até diminuí-los...
Então e que tal devolverem o dinheiro roubado???? É que esse dinheiro que está nas mãos de meia dúzia de espertalhões dava para pagar a crise. Mas não, claro, a solução é voltar a roubar os que já andam a ser espoliados há anos, com a conversa da 'garantia' de que os sacríficios valeriam a pena. Ah bem! Se garantem ficamos imediatamente descansados, porque as garantias dos descarados têm muito valor.
Agora é moda publicar que o ministro tal, ou o primeiro ministro, ou governador do banco de Portugal, ou outro qualquer dos quarenta, «garante isto e garante aquilo». Que descaramento usarem a palavra garantia, quando a única coisa que garantem é a incompetência, a ignorância e a ganância.
Por acaso, descarado é, literalmente, quem não tem cara, quem não tem face, ou seja, quem não tem vergonha em apresentar-se aos outros sem uma cara.
E, já agora, onde anda a oposição, que diabo! Que andam a fazer? Ou também têm negócios que precisam da consagração do grande paradigma do montanhismo social?
Que corja, como dizia o Eça, este país é uma choldra!
Estou a ler Philosophy and Living, um livro de Stapledon, autor que só recentemente descobri por intermédio de um amigo. Stapledon foi um autor influente que escreveu, para além de ensaios filosóficos, obras de ficção científica, com o intuito de divulgar as suas ideias a um público mais vasto. Essas obras de ficção têm, portanto, dois níveis de leitura, sendo que a latente, por assim dizer, é filosófica.
A maior parte das obras dele está, há muito, esgotada, mas podem ler-se num site que lhe é dedicado → www.geocities.com/olafstapledon_archive/
Stapledon preocupa-se bastante com o problema da civilização, o que não espanta pois esteve na primeira Grande Guerra (foi objector de consciência e esteve no serviço das ambulâncias) e pressentiu a barbárie da segunda. Neste livro que estou a ler dedica vários capítulos aos problemas da personalidade, da vida em comunidade, da mudança social, etc., à luz das teorias da época, mas ultrapassando-as com uma visão muito lúcida e sólida sobre os desafios que esperavam a sociedade numa época que ele caracteriza como «selvagem» - o livro é escrito/publicado em 1939, em vésperas da segunda guerra começar, mas já com alguns anos de ideologia e práticas nazis a proliferar pela europa.
A certa altura, no capítulo intitulado 'comunidade', onde discute como construir uma verdadeira comunidade à escala mundial insistindo no papel da educação e da liberdade de expressão nessa tarefa, diz o seguinte: a integridade intelectual e moral deve ser o objectivo supremo da educação.
Estas palavras e as ideias dele são completamente actuais. Nenhum evolução positiva é possível à margem da questão moral. O progresso técnico por si só, desligado duma evolução da humanidade nas suas qualidades morais dá aso às maiores manifestações de barbárie e ao retrocesso de qualquer projecto comum da humanidade como comunidade capaz de viver em paz. O conhecimento do passado, não só nos factos, mas nas ideias daqueles que mostraram, em todas as épocas, uma lucidez visionária é fundamental para que não se cometam recorrente e constantemente os mesmos erros. O problema da crise actual, como todos sabemos, não é meramente um problema económico, é um problema civilizacional - político e, sobretudo moral.
O individualismo cego dos que não se percebem a si mesmos como seres em comunidade, dos que não foram educados para respeitar a integridade intelectual e moral. Por isso, não a compreendem nem respeitam e acham absolutamente normal reduzir a educação à manipulação de 'gadgets' e fixar-lhe como meta o sucesso dos números onde o valor mais importante é o 'montanhismo social', amoral.
À luz desta (a nossa, a presente) sociedade assim educada percebe-se claramente a veneração que os congressistas do PS manifestam ao seu líder - o exemplo de maior sucesso nacional do valor supremo do 'montanhismo social', amoral.
Por todo o lado se diz que este congresso do PS é a consagração de Sócrates.
«Consagrar» é tornar «sagrado» → diz-se daquilo ou daquele(s) que merecem veneração religiosa nas assembleias de fiéis → os que merecem veneração religiosa são os que têm uma relação privilegiada com os deuses, com as divindades; os que têm um toque do divino; por esta ordem de ideias, os militantes daquele partido comportam-se como fiéis reunidos em assembleia religiosa em veneração ao líder.
Onde está a democracia adulta, a da autonomia da razão? Será que no congresso os militantes benzem-se antes do início dos trabalhos? Tocam nas vestes do líder e caem prostrados em transe?
Sócrates, que tem o dom de Midas ao contrário, em vez de milagres faz 'malogros', isto é, em vez de curar os cegos devolvendo-lhes a visão faz exactamente o contrário: cega com o brilho do ouro todos os que antes viam. A «consagração» de Sócrates é, na realidade, a «consagração» do dinheiro, promovido a divindade venerada com a subserviência que caracteriza os regimes onde não se valoriza a democracia adulta, que implica a visão dos homens como homens, apenas homens, e sempre homens.
Nestas coisas se vê -se não estamos cegos pelo malogro- a decadência da vida democrática do nosso país.
Li que um estudo da Universidade de Lisboa (ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx) encontrou uma correlação entre o nível socio-económico dos alunos e o acesso aos cursos onde as notas de entrada são mais elevadas, concluindo que o acesso ao ensino superior «não é apenas uma questão de mérito». A questão está mal explicada, porque a correlação é entre o nível sócio-económico e o mérito. Não se retira mérito aos alunos que entram para medicina, pelo facto de serem oriundos de famílias onde os pais têm formação académica superior e condições económicas condizentes. O que o estudo mostra é que o mérito não floresce no vazio -a não ser em casos raros e excepcionais-, antes necessita de contexto culturalmente rico para se desenvolver.
O que acontece é que alunos mais ricos estão em colégios onde nada falta, em termos de qualidade de espaço, equipamentos, atenção dos professores e outros profissionais, etc. Também estão em escolas públicas, mas geralmente em zonas privilegiadas onde as famílias suprem as necessidades das escolas - mesmo que estejam em zonas mais modestas, aquilo que a escola pública não fornece aos filhos os pais compensam em casa, seja no ambiente, nas conversas, nas férias, nos filmes/livros/jogos que têm em casa, nas idas a museus, centros culturais, etc. Até noutras coisas mais básicas, como o espaço em casa, a privacidade, os contactos com meios diversificados enriquecidos. Um aluno destes que tenha problemas na matemática, tem pais que suprem as dificuldades, ou porque são da área, ou porque têm dinheiro para encontrar auxílio adequado. Quem diz a matemática diz a língua portuguesa ou outra disciplina.
Em contrapartida, alunos sem grandes posses, estão em escolas públicas,geralmente mais carenciadas, com falta de pessoal, falta de recursos (os recursos técnicos são de extrema importância para o contacto e incentivo ao estudo de certas ciências, e as escolas sem laboratórios, por exemplo, estão reduzidas a aulas de papel e caneta), professores com alunos em excesso, desmotivados por chefias incompetentes nas direcções regionais e no ministério, falta de segurança, condições de trabalho execráveis, etc. Depois de um dia de aulas numa escola sem condições, onde se sentem perdidos no meio de turmas enormes estes alunos regressam a casa, muitas vezes para ajudarem os pais nas tarefas da casa com irmãos mais novos, para quartos sem privacidade, num espaço degradado sem qualidade de vida, sem acesso a um ambiente culturalmente adequado ao desenvolvimento de interesses científicos ou culturais, sem pais capazes de os ajudar nas dificuldades.
A verdade é que o mérito não é uma capacidade inata, mas um conjunto de capacidades ou disposições ou talentos que se desenvolvem em ambiente propício - e o ambiente das classes mais favorecidas é propício.
É claro que, se as escolas públicas tivessem boas condições materiais e ambiente cultural de qualidade, poderiam colmatar as insuficiências das famílias. Se as turmas fossem pequenas de modo que os professores pudessem ter controlo e estabelecer laços de proximidade, não com um ou outro aluno ou turmas, mas com todos; saber das dificuldades de cada um, das potencialidades, dos interesses, das expectativas. Ter tempo para orientá-los, etc.; ter laboratórios e bibliotecas devidamente equipados; ter tempo para se actualizarem, para investigarem; terem funcionários em número suficiente para haver segurança, etc.
Este artigo não diz nada de novo a quem é professor. É claro que os alunos do colégio S. João de Brito, em Lisboa, no Restelo, estão sempre no 'top five' do ranking nacional. O escândalo era se não estivessem!
Em contrapartida, o que é excepcional é que a minha escola, num dos distritos mais pobres do país e cheia de alunos de classes desfavorecidas e ambientes muitíissimo complicados (como o bairro da Bela Vista) tenha, todos os anos, alunos a entrar em universidades onde o acesso obriga a notas bastante altas. O que prova que vale a pena investir na educação pública.
É certo que esses alunos cada vez são menos, à medida que o desinvestimento nas escolas públicas e a destruição dos seus professores progride. Mas podia não ser assim. É-o por escolha e decisão de quem nos governa.
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