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no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau
Li há bocado num jornal que os líderes muçulmanos guineenses estão revoltados pela mera possibilidade de o parlamento local aprovar uma lei que impeça, doravante, a mutilação das mulheres. Consideram uma grande afronta ao Islão sagrado não poder continuar a mutilar mulheres. No ano passado, só em Bissau, foram mutiladas mais de quatro mil raparigas para agradar à religião muçulmana.
Isto diz muito sobre a religião. Metade do planeta anda em guerra, milhões de crianças morrem à fome, outras raptadas e vendidas como escravas; o planeta em risco por causa da degradação ambiental que mata e deixa na pobreza milhões por esse mundo fora. Por todo o lado a exploração do homem pelo homem. E, a crer nos líderes muçulmanos, Deus está preocupado é com o facto de os homens não poderem continuar a ordenar a mutilação das mulheres.
Que uma religião possa ter como ideal a mutilação de outros seres humanos mostra bem que o objectivo de muitas religiões não é a salvação da alma, não é a prática do bem, não é a difusão da paz e da tolerância mas apenas e somente a ganância do poder sobre os seus semelhantes; neste caso o gáudio de condenar mulheres à submissão por via da mutilação.
É claro que todos estes senhores assinaram ou assinariam a declaração universal dos direitos do Homem. Mas levam a coisa tão à letra que excluem as mulheres da humanidade.
As religiões, em geral, parecem não ser mais que clubes de cavalheiros onde as mulheres são bem-vindas apenas para tratar daqueles assuntos como arranjar as flores e fazer bolos para as festas.
Quem são estas pessoas que se dão a si próprias o poder de decidir que alguém pode ser mutilado? E como é que os governos as ouvem? Porque é que não são procuradas pela justiça mundial com mandado de captura? O que é que as leva a pensar que estão à parte dos seres humanos de tal modo que não precisam de se comportar como seres humanos? Desde quando é que ser carrasco é bom para o mundo, para a paz ou para outra coisa qualquer?
Porque é que as mulheres todas não abandonam, pura e simplesmente, uma religião que ignora os seus interesses, os seus anseios, os seus direitos, e que tem como objectivo «sagrado» mutilá-las?
Se existe mesmo um Deus, espero que toda esta horda de carrascos mutiladores e hipócritas venha a ter o castigo que merece.
Hoje, depois de ouvir alguns discursos políticos num dos telejornais dei comigo a reler A Ascensão Da Insignificância do Castoriadis. E foi a reler essa entrevista, de 1993, que percebi o que me tem andado a incomodar.
Castoriadis fala da decadência da civilização e pergunta se será possível esta sociedade continuar a funcionar e reproduzir-se, “quando em todas as sociedades ocidentais se proclama abertamente (e em França, cabe aos socialistas a glória de o terem feito de um modo que a direita nunca tinha ousado fazer) que o único valor é o lucro e que o ideal de vida social é o enriquecimento."
Se assim fosse – diz ele – os funcionários deviam aceitar e pedir umas cunhas para efectuarem o seu trabalho, os juízes deviam leiloar as decisões dos tribunais, os educadores fornecer boas notas às crianças cujos pais lhes oferecessem um cheque à socapa e assim por diante. Em sua opinião só o medo da sanção penal os impede de assim proceder.
Castoriadis diz nesta entrevista que nunca como hoje foi tão urgente reinventar a sociedade, imaginar um outro sentido para a sua existência. E acaba este parágrafo com as seguintes palavras: “ O que podemos dizer é que todos aqueles que têm consciência do carácter terrivelmente grave do que está em jogo devem tentar falar, devem criticar esta corrida para o abismo, devem procurar despertar a consciência dos seus concidadãos”.
Ora, foi justamente aqui no fim do parágrafo que me apercebi do que tem andado a incomodar-me.
Não é a constatação de que vivemos uma daquelas épocas históricas em que os insignificantes saltaram para dentro da carroça, tomaram conta das rédeas e conduzem-na agora pela ribanceira abaixo em direcção ao desastre: isso é evidente de há uns anos a esta parte; não é a constatação do modo como imprimiram uma dinâmica de mediocridade a toda a sociedade, parecendo ter o condão de trazer ao de cima, apenas e somente o que de pior há nas pessoas; não, não é isso.
É a constatação da complacência com que a nossa (pseudo) intelectualidade assistiu, e em alguns casos aplaudiu até, o trabalho de perversão e destruição do sistema judicial, do sistema educativo público e do sistema de saúde pública. É isso o que me choca! Comentadores, opositores, meios de comunicação, gente que ocupa cargos de influência política, nas universidades, nas empresas públicas, nos jornais e nas televisões a louvarem o trabalho de sistemática decomposição da sociedade que tem sido a obra de, pelo menos, há uns dez anos para cá.
Das duas, uma: ou não tinham e não têm a consciência de que fala Castoriadis (como é possível?); ou, se a tinham, porque não falaram? Se calhar não tinham mesmo.
Temos agora um sistema judicial em quem ninguém acredita por conta da impunidade que por aí grassa; um sistema educativo onde proliferam os colégios privados para os bolsos só de alguns, depois de se ter destruído o ensino público (esse trabalhinho, aliás, ainda não está completamente acabado – mas está quase), e um sistema de saúde na ruína, que se orgulha de ter os bebés a nascer no meio da estrada. Também aí proliferam os hospitais privados - para quem pode. A banca enriquece, os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres. No Natal diz-se ao povo que a culpa da crise reside no apetite dos portugueses que gastam dinheiro a comer demais!
A Hanna Arendt dizia que os povos têm os governantes que merecem.
Pelos vistos têm também os intelectuais que merecem.
Daqui da janela do meu escritório vejo os telhados de Setúbal espraiarem-se até ao rio; vejo a barra, a ponta de Tróia, a serra da Arrábida e o castelo. Hoje, na claridade do fim de dia há uma tonalidade de prata por todo o lado – são camadas de tonalidades de cinzento que começam nas nuvens grossas e densas e acabam no tom de prata do rio e do mar. Que belo!
Há uma harmonia calma no modo como a natureza se conjugou aqui tão felizmente.
Vejo daqui os ferrys e os pequenos barcos e veleiros que cruzam o rio; vejo os grandes navios no horizonte e os petroleiros e cargueiros que entram em direcção ao porto.
Ponho-me aqui a olhar, só pelo prazer de olhar, para esta paisagem deslumbrante.
E, quando fico aqui sentada à secretária a trabalhar muitas horas de seguida vou acompanhando o evoluir da natureza: a mudança da maré, os movimentos na água, a formação e deslocação das nuvens, a alteração das cores deste rio e desta serra e deste céu que desde há séculos acompanham, por sua vez, o evoluir das gentes que por aqui passam.
Também vejo daqui o cemitério, com os altos ciprestes que se vergam com o vento; parecem gigantes mal equilibrados que se debruçam para conversar com os habitantes que guardam no seu domínio.
Pergunto a mim mesma, quando eu jazer no campo que lhes pertence, quem estará aqui sentada no meu lugar a olhá-los como os olhei… e o que pensará?
(publicado originalmente no Libertismo)
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