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Vivemos numa época em que toda a gente pensa que o seu conhecimento é tão válido como o dos que estudaram os assuntos e se dedicam à sua prática. Dois casos:

 

Outro dia um colega veio ter comigo e disse-me, 'olha lá, sabias que os alunos tal e tal tinham anulado a matrícula à minha disciplina?' Não, não sabia e acho estranho porque não estão estão em risco de reprovar, são alunos razoáveis. Na aula seguinte perguntei-lhes, 'olhem lá, então vocês anularam a matrícula às três disciplinas específicas do curso?' - Ah, nós vamos mudar de curso e não precisamos dessas disciplinas. 'Mudar de curso? Mas a propósito de quê?' -ah, fui eu que decidi e o ... resolveu que também muda. 'Decidiu? Assim sem mais? E não se lembraram de falar com os professores das disciplinas ou comigo para ter um parecer objectivo? O que é que vos leva a pensar que é melhor para vocês mudar de curso? Se calhar estão no curso adequado e a mudança com a perda de um ano é um mau passo.' - Ah, diz ela, é o que nós queremos e falámos com os pais, não precisamos de falar com professores, a vida é nossa e nós é que sabemos o que é melhor para nós'.

 

No ano passado uma mãe foi à escola entregar-me papéis de justificação de faltas do filho. Perguntei-lhe o que se passava. Disse-me que o filho tinha tido um problema nas costas, que tinha ido a um médico, que o médico tinha receitado antibióticos e dito que ele beneficiava de massagens e certo tipo de exercícios. Então ela foi com o filho a um tipo que faz massagens e os tais exercícios e esse indivíduo, tendo ouvido a história do rapaz, disse-lhe que os médicos têm a mania de passar comprimidos para tudo, que ele não precisava de drogas e que bastavam os exercícios e as massagens. A mulher disse ao filho para interromper os antibióticos. O filho estava cada vez pior. Disse à senhora, 'mandou o seu filho interromper a terapia sem consultar o médico?'. -Então, o senhor ...  disse que não era preciso. 'Mas o senhor ... é médico?' -Não, mas ele disse que já tinha tratado muitos casos de lesões e sabia o que fazer.

 

Num caso e noutro, os miúdos e os pais acham que a sua opinião acerca de assuntos profissionais para que não têm, nem conhecimentos, nem prática, são tão bons como os dos especialistas. É assim que os pais vão às escolas dizer que os filhos foram mal avaliados ou que os deixam mudar de curso sem pedir opinião a um professor que os conheça ou que resolvem interromper uma medicação receitada pelo médico e depois queixam-se dos maus resultados.

Isto é assim por todo o lado. Pessoas que não têm formação nem percebem nada dos assuntos subsituem-se aos especialistas.

Nas próprias escolas se faz isto, embora eu pense que seja ilegal mas para sabermos isso é preciso fazer uma queixa... pessoas que são de uma disciplina vão dar aulas de outra da qual não percebem um boi e andam a estragar os alunos para a própria disciplina. Vão para lá dizer dislates e (des)ensinar que tudo é uma questão de opiniões e têm tabuletas para dizer, 'eu sou a favor', 'eu sou contra'... como é que nós vamos destruir os vícios e a mediocridade que essas pessoas inculcaram nos miúdos, quando nos chegarem às mãos? Para não falar que os miúdos dizem alto que odeiam aquilo (e não têm respeito pelos professores) e portanto, quando chegarem à altura de a terem já vêm a odiá-la.

 

É assim como se eu, que até acho que tenho um bom domínio da Língua Portuguesa e não escrevo mal, achasse que isso era o suficiente para ir ensinar Português... o que sei eu de ensinar Português, ensinar a gostar da Língua, ensinar a saber usá-la com rigor, imaginação, criatividade... Também sei usar o computador e os programas que me interessam mas isso não me torna especialista em saber ensinar a programar... também sei falar inglês e francês mas isso não me transforma em especialista de ensinar inglês e francês... é uma vergonha, uma desconsideração pelos alunos e pelo próprio saber e mostra o nível de mediocridade e falta de noção que essas pessoas têm dos seus próprios limites. Como é que pessoas que não têm nenhum respeito pelo saber podem ser professores?

 

Estes medíocres que acham que se pode ser professor de qualquer coisa mesmo que não se saiba nada do assunto seguem esta corrente assente no relativismo do conhecimento que adveio, em grande parte, como consequência, da filosofia crítica de Kant.

É claro que o relativismo do conhecimento não advoga a equivalência de todas as opiniões a conhecimentos mas é assim que ele chega ao senso comum que, estando por fora destas discussões sofre-lhe os efeitos.

É assim que Costa vem dizer que em sua opinião a Ponte sobre o Tejo está segura ou que o SS é ministro de tudo e mais alguma coisa ou que o senhor Brandão, que não percebe de educação, é ministro da educação ou que o PPC vai ser 'professor' numa universidade. É assim que o país está como está: as pessoas estão nos cargos, não por terem conhecimentos e prática nos assuntos que têm que tratar mas por serem amigos políticos. No tempo da troika, mandaram os portugueses que estão à frente dos bancos estudar pela razão de não perceberem nada de gestão de bancos. As pessoas aqui ofenderam-se muito... com a verdade...

 

Esta decadência também está ligada, penso, à própria decadência e mercantilização das universidades, dos cursos à bolonhesa, dos cursos onde metade das cadeiras se conseguem com equivalências manhosas... começa nas escolas, com a passagem à balda de todos os alunos, com professores a falar do que não sabem...

Este artigo é sobre isso mesmo: a decadência da confiança no conhecimento dos especialistas e as consequências perigosas dessa tendência.

 

 aditamento: a recente legislação que pretende que os engenheiros assinem projectos de arquitectura como se fossem arquitectos vai no mesmo sentido.

The Mirage of Knowledge

Tom Nichols dissects the dangerous antipathy to expertise.

publicado às 06:19


5 comentários

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De Anónimo a 17.03.2018 às 11:00

Não estará a ser um pouquinho injusta com o nosso amigo Immanuel? Quem escreve "O que é o Iluminismo?" de facto incita a questionar o saber meramente assente na proveniência, que não nos conteúdos; mas é a mesma pessoa que escreve "O Conflito das Faculdades", onde as autoridades são postas no seu lugar, não desaparecem.
Ademais, soa um bocadinho estranho caracterizar uma epistemologia transcendental como "relativista"...
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De beatriz j a a 17.03.2018 às 19:06

Eu não disse que ele era relativista mas a filosofia crítica, ao separar o mundo fenoménico do numénico e ao mostrar de modo tão convincente que só temos acesso ao primeiro e de um modo marcado pela nossa subjectividade, iniciou o caminho do fim dos absolutos.
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De beatriz j a a 17.03.2018 às 19:13

... ou se disse, não queria dizer...
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De André a 19.03.2018 às 10:14

Não digo que não tenha razão, parece-me sim um exagero imputar isso a Kant. Por um lado, a inacessibilidade à "Ding an sich" é acompanhada de um forte argumento a favor da sua existência, que é já uma afirmação epistemológica formal. Ademais, a inacessibilidade a determinados tipos de conhecimento é algo que perpassa a história da filosofia: nenhum sage vivo conhece integralmente as Formas puras, em Platão; nenhum Escolástico dirá que seja possível a uma criatura conhecer outra criatura integralmente salvo enquanto participando pela graça na omnisciência de Deus; e mesmo os racionalistas seiscentistas que defendem a possibilidade de um conhecimento como que "sub specie aeternitatis" não negam que o homem tenha de conciliar a possibilidade dessa condição com um conhecimento passional (imperfeito).
Por outro lado, não permanecem as categorias transcendentais em Kant como uma espécie de farol da ideia de "absoluto"? Essa mesma ideia de fundamento que encontramos nos primeiros princípios de Aristóteles, no argumento ontológico de Anselmo, na "causa sui" dos segundos escolásticos e dos modernos, e que mais tarde transita para a normatividade em conceitos como a soberania em Bodin e a norma transcendental em Kelsen, partilha as características de um apriorismo que não só enquadra o conhecimento subsequente mas serve de critério para aferir o que se conhece bem e o que se conhece mal (inclusive no plano moral).
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De beatriz j a a 19.03.2018 às 13:05

Voltei a ler o que escrevi e de facto dou a entender que o relativismo vem de Kant o que é estúpido. Mas também não imputo este estado de coisas directamente a Kant, como se ele tivesse proferido juízos nesse sentido. Ademais tenho certeza que o André tem razão no que diz e não tenho dúvidas que sabe muito mais do que o que sei ou saberei. No entanto, o que me parece é que antes de Kant essa possibilidade não é negada, mesmo quando não é explicitamente afirmada ou se lhe realçam as dificuldades e, quer parecer-me que depois de Kant, o mais que podemos aspirar é à universalidade, a critérios que servem de guias de objectividade. Mas a questão da verdade, depois dele, tornou-se muito difícil, parece ter-se esvaziado de sentido e, por isso, aos poucos, ter dado lugar a este subjectivismo e relativismo que aparecem intransponíveis. Ou estou enganada?

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