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o processo da Casa Pia

por beatriz j a, em 20.12.08

 

 

Durante o inverno de 1945-1946, ainda no rescaldo da guerra, Karl Jaspers deu um curso sobre a situação espiritual da Alemanha, por causa dos campos de morte, do processo de Nuremberga e das acusações do mundo inteiro que recaíam sobre o povo alemão. As lições desse curso foram publicadas sob o título A Questão da Culpabilidade (ou 'La Culpabilité Allemande', na tradução francesa, que foi a que li.)

Diz ele na introdução: ao publicar estas considerações eu queria, como alemão, levar os meus compatriotas a buscar a clareza e a unanimidade e, como homem, tomar parte com os outros homens, num esforço comum pela verdade.

 

Neste livro Jaspers distingue quatro tipos ou graus de culpabilidade:

 

1) a culpabilidade criminal - os crimes são constituídos por actos objectivos que infringem leis unívocas. A instância competente, o tribunal, estabelece os factos e aplica as leis;

 

2) a culpabilidade política - reside nos actos dos homens de Estado e no facto de, sendo nós cidadãos dum Estado, devermos assumir as consequências dos actos cometidos por esse Estado aos quais estamos subordinados e cuja ordem nos permite viver. Cada indivíduo carrega uma parte da responsabilidade pelo modo como o Estado é governado;

 

3) a culpabilidade moral - os actos que realizamos são sempre, em última análise, individuais,e nós somos moralmente responsáveis por eles (mesmo os políticos ou os militares). A expressão «uma ordem é uma ordem» não tem, nunca, um valor decisivo. Um crime não deixa de ser crime pelo facto de ter sido ordenado (embora possa ter circunstâncias atenuantes); do mesmo modo, todo o acto se submete ao juízo moral.

A instância competente é a consciência individual.

 

4) a culpabilidade metafísica - existe entre os homens, pelo facto de serem homens, uma solidariedade em virtude da qual cada um se torna co-responsável de toda a injustiça e de todo o mal cometidos no mundo, em particular dos crimes cometidos na sua presença ou sem que os ignore. Se nada fazemos para os impedir somos cumplices.

 

Eu estava a ler isto e a pensar no caso da Casa Pia. O que lá se passou, e talvez ainda se passe, é um crime hediondo que espalha um manto de culpas que envergonham não apenas os criminosos que os cometeram, mas o país também.

Uma casa de acolhimento de crianças. Pobres, abandonadas,a precisar de protecção, carinho, segurança. Uma casa que as autoridades transformaram numa espécie de quinta onde se engordam os cordeirinhos para serem repartidos em festins pelos lobos.

Um crime que dura há quanto tempo? Francamente não sei. Isto já vem do tempo do Salazar ou foi só depois do 25 de Abril?

 

Anos e anos e anos, implicam criminosos e criminosos e criminosos. Tantos anos de abusos continuados a tantas crianças implicam muitos criminosos. Basta fazer umas contas. O Bibi, sozinho, não abusou de centenas de crianças durantes sei lá quantos anos, aos 10 por dia, como é evidente.

E estamos a falar de criminosos em todos os ramos do poder. Porque foi preciso muita cobertura para guardar segredo e proteger os criminosos e os crimes. Tem de haver ali políticos, gente da administração, da polícia, juízes, etc. Onde está toda essa gente? Esses pedófilos, chulos e proxenetas? É assustador pensar que podemos estar a ser governados, directa ou indirectamente,  por gente desse calibre.

 

Que não se tenha tentado apurar a verdade de que fala Jaspers é trágico porque impede a catarse do crime: porque não se atribui a culpa criminal a quem a tem, nem a moral tampouco - todos os que souberam e calaram, por medo, por ambição política etc., têm uma grande nódoa - esses que tudo viram, tudo sabiam e nada fizeram. São pessoas sem aquilo que Jaspers chama "imaginação do coração", isto é, a capacidade de se pôr no lugar do outro e sentir o seu sofrimento intolerável.

Mas, que alguém do Estado, portanto também em meu nome, tenha acobertado esses crimes, torna-me a mim cúmplice involuntária, porque o dinheiro dos meus impostos também serviu para manter a quinta dos cordeiros para os lobos. Essa gente manchou todo o povo com os seus crimes. Mesmo quem não votou nestes tipos é, como diz Jaspers, co-responsável pelos actos que o Estado comete, pois é em seu nome que são feitos. 

 

Tenho esperança, e a história dá-me a certeza, de que todos os nomes serão, um dia, conhecidos. É sempre assim. Com o tempo tudo acaba por se saber, porque os que sabem acabam sempre por falar.  Pode levar tempo, mas acontecerá.

Tenho pena dos filhos desses criminosos que ficarão manchados pelos crimes dos pais, para sempre.

Acima de tudo tenho pena dos miúdos obrigados a tansformarem-se em velhos antes do tempo, por aqueles que os deviam defender.

 

'Monstro', significa 'homem-besta'; e a monstruosidade significa a desumanização do outro.

Um dia toda a gente conhecerá o rosto dos monstros que cometeram estas monstruosidades.

 

 

publicado às 01:21



no cabeçalho, pintura de Paul Béliveau. mail b.alcobia@sapo.pt

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